Parte Primeira

Pandora, Aquela que tem todos os dons, etimologicamente, a que tudo possui, a que tudo dá e a que tudo tira, tornou-se conhecida através da Obra “Os Trabalhos e os Dias” do Poeta Grego Hesíodo que viveu no Século 8 a.C. Foi “criada”, a pedido de Zeus, o deus supremo do Olimpo, por Hefesto, o Artista Celestial e Atena, a deusa da Sabedoria, da Civilização, da Arte, da Justiça e da Guerra. Em sua “criação”, Pandora recebeu de todos os deuses uma qualidade: graça, beleza, persuasão, inteligência, meiguice, paciência, eloquência, curiosidade, habilidades artesanais… Enfim, foi criada à imagem e semelhança dos deuses.

De acordo com a Lenda, foi a primeira mulher mortal a ser criada e Zeus tinha um propósito muito particular e secreto com a sua existência: vingar-se de Prometheus que havia roubado o fogo dos deuses para ofertar aos homens que havia criado e que viviam em condições paradisíacas. Seu objetivo era pôr fim a este estado de delícias em que viviam e, para tanto, presenteou Pandora com uma Caixa (Jarro) que continha todas as mazelas do mundo: doença, velhice, desconfiança, loucura, mentira, ciúme, guerra, morte, desesperança… solicitando, ardilosamente, que jamais a abrisse. Pandora desconhecia o conteúdo da Caixa, contudo, Zeus contava com a possibilidade de que, em algum momento, Ela não resistisse à curiosidade e a abrisse.

Quando da criação de Pandora Prometheus, como castigo por sua ousadia de ter roubado o fogo dos deuses para animar os homens por Ele criado, já havia sido acorrentado no Cáucaso onde, diariamente, uma águia lhe devorava o fígado durante o dia e que à noite se regenerava.

Contrariando o pedido de Prometheus para jamais aceitar qualquer oferta de Zeus, seu irmão Epimeteu, recebe de Hermes Pandora por esposa. Da união entre Epimeteu e Pandora nasce Pirra. 

Num dado momento, Pandora, fascinada pela curiosidade, materializa o tão esperado desejo de vingança de Zeus: abre a Caixa!! Da Caixa escapa toda sorte de infortúnios que passará a governar a vida dos homens outrora criado por Prometheus colocando fim à Lendária Idade de Ouro da Humanidade. Pandora, assustada, na tentativa de deter o que escapava da Caixa a fecha rapidamente, retendo em seu interior tão somente a Esperança.

A partir da abertura da Caixa, os homens passam a viver um doloroso processo de hostilidade, guerra, ciúme, doença, morte, tristeza, mentira, embuste, traição, trapaça, corrupção… esquecendo-se do Fogo Sagrado da Consciência anteriormente ofertado a eles por Prometheus.

O ponto alto da loucura da raça humana ocorre quando Zeus, sabedor de seus desatinos, vem à Terra para conferir e visitar a casa de Licaão, primeiro Rei Mítico da Arcádia. Zeus é recebido pelo povo devoto e o anfitrião prepara um banquete cometendo dois atos de crueldade: planeja matar Zeus e servir carne humana no jantar. Excessos que justificariam, diante do Conselho dos deuses do Olimpo, simpatizantes da raça humana, a permissão tão sonhada para eliminá-la. Contudo, antes de retornar ao Olimpo, transforma Licaão em um ser meio humano e meio lobo, dando origem ao que hoje conhecemos como Lobisomem.

A vingança tão esperada de Zeus em breve seria consumada! Agora conseguiria a permissão do Conselho Olímpico para destruir os Seres criados por Prometheus. 

E, assim, dos céus caem águas intensas e continuadas a tudo inundando. Entretanto, Deucalião, filho mortal de Prometheus, que ficou conhecido como o mais justo dos Homens, já havia conhecido Pirra, filha de Epimeteu e Pandora, e juntos formaram um casal que daria início a uma nova geração de seres humanos no planeta.

Segundo a Lenda, haviam construído um barco no qual navegaram durante todo o dilúvio até alcançarem o Monte Parnassus. Vão à Fonte de Aphisus e visitam o Templo de Themis para pedir ajuda na reparação da raça humana. Themis é a face da deusa da Justiça que empunha a balança com a qual equilibra a Razão e o Sábio Entendimento. Ela não é portadora da espada!

Ao ser consultada por Deucalião e Pirra, Themis responde: “Devem deixar o Templo e, com as cabeças veladas e as roupas soltas, jogar para trás os ossos de sua Grande Mãe Terra”. Deucalião depois de muito refletir, consegue desvendar o enigma. Entende que os ossos da Grande Mãe Terra são as pedras. Assim, Ele e Pirra apanham as pedras e seguem o que Themis orientou. Das pedras jogadas por Deucalião, que amolecem, nascem os homens e das pedras jogadas por Pirra nascem as mulheres e os seres da natureza nascem espontaneamente, são recriados a partir da própria Mãe Terra.

Assim nasce a nova humanidade que habita a Terra atualmente.

Parte segunda

Pandora, pandemia e o colapso humano

Uma possível leitura acerca da pandemia que ora vivemos

Curiosamente, Pandora está inserida dentro do Mito de Prometeu e Epimeteu. Conta o Mito que Prometeu e Epimeteu receberam a incumbência de criar os seres vivos da Terra. Prometeu, o Mestre Artesão, o Filho da Previsão, Aquele que olha para frente, Aquele que personifica as forças evolucionantes do devir, criou o homem com muito cuidado a partir da argila e Atena concedeu à criação de Prometeu o Sopro da Vida. Epimeteu, o Filho da reflexão tardia, Aquele que olha para trás, Aquele que personifica as forças primárias da vida, as memórias arcaicas vivas e sempre atuantes no psiquismo de todos os seres, ficou com a responsabilidade de conceder um dom específico a cada animal.

Por amor aos homens que criara Prometeu ousa roubar o Fogo dos deuses. O homem recém criado do barro já havia recebido o Sopro da Vida de Atena, agora era necessário lhe ofertar a Consciência, a habilidade diferenciada que lhe permitiria iniciar uma longa e árdua aventura em busca do Conhecimento da auto superação.  Aventura esta que ficou conhecida como a Jornada do Aprendiz que se torna Herói. Sim. O homem feito de barro, a princípio, recebeu atributos naturais (Vide o Mito de Prometeu) e lhe foi confiada a ingente tarefa de transformar instintos em consciência iluminada. 

Para tanto, necessariamente, trabalharia para tornar-se herói significando isto que o homem natural, em sua jornada, haveria de cumprir um feito de dimensão épica, ou seja, teria que reunir em si atributos para superar, de forma excepcional, sua dimensão natural e adentrar no reino Humano. Para materializar tal façanha, precisaria acordar em si três características ímpares: uma atitude valente (coragem), um senso de justiça inquebrantável e a disponibilidade para sacrificar-se pelos demais. Assim se expressando no mundo cumpriria a sua dupla filiação: enquanto filho da natureza (do barro) e enquanto filho do Sagrado (de um deus). 

Haveria de superar os instintos (o medo, a covardia, a desesperança, o instinto de poder, a arrogância, a desistência, a inércia…) para expressar os atributos inerentes do Sagrado na Dimensão Humana (a coragem, o auto sacrifício, a tolerância, a amorosidade, o auxílio mútuo…).

Sintetizando, a narrativa do Mito de Prometeu, os Seres por Ele criados e a Jornada Arquetípica a ser empreendida na dimensão espaço/tempo, rumo a desdobramentos de maior complexidade consciencial, nos fala da estruturação e do desenvolvimento dos Processos Civilizatórios, da Cultura, da Arte, da Ciência e da Espiritualidade que confere um sentido a todas estas instâncias.

Contudo, por tanta ousadia, Prometeu acordou a fúria de Zeus, deus máximo do Olimpo, que o acorrentou no Cáucaso. Antes de ser acorrentado solicitou a seu irmão Epimeteu (aquele que enxerga a posteriori) que nada aceitasse vindo de Zeus, pois sabia que o mesmo tramava contra a sua recém criação.

Zeus só não conseguia destruir os Humanos porque o Conselho Olímpico era simpatizante do homem criado por Prometeu e não permitia tal ação do deus máximo. Entretanto, Zeus nunca desistia da ideia de aniquilar o homem. É precisamente aqui que entra Pandora na história. Zeus a dá por esposa para Epimeteu e, como presente de casamento, lhe oferta uma Caixa com tudo o que há no mundo e recomenda que jamais a abra, embora soubesse que, em algum momento, ela não resistiria e a abriria. E assim foi.

Segundo o Mito, finalmente, Pandora abre a Caixa e ao ver tudo que dela saia, assustada, tenta fechá-la ficando presa dentro da mesma somente a esperança, uma alusão ao fato de que a esperança é um tesouro que mora no interior mais profundo de cada Ser e que se expressa somente quando temos uma relação de profunda confiança na Vida.

Sim. Quando confiamos intuitivamente naquilo que ainda não vemos e trabalhamos para que o que está em potencial nasça a partir de nossa ação valente e determinada, a nossa existência adquire um sentido de força e bravura que nos confere destemor, prudência e sabedoria. Quando trabalhamos para arrancar do reino das infinitas possibilidades aquilo que nos parece inexistente, mesmo sem nenhuma garantia de sucesso em nossos empreendimentos, realizamos a extraordinária jornada diária de tornar-se, efetivamente, o que Prometeu sonhou para nós: Tornar-se Homem.

Para realizar tal feito faz-se necessário conhecermos a natureza de Pandora, a portadora de todos os dons, Aquela que tudo possui, que tudo dá e que tudo tira, uma vez que Ela personifica o “Reino de todas as Possibilidades”. 

O Homem-Natureza precisa  tornar-se  Alquimista por excelência, ou seja, necessita acordar a habilidade de retirar criativa e conscientemente desta instância universal, personificada em Pandora, a matéria prima (cósmica, natural e humana) necessária para a sua própria construção. Contudo, importante se faz enfatizar que todo e qualquer poder que escapar da Caixa de Pandora haverá de ter um desdobramento expressivo em nossas vidas e no mundo.

É precisamente, a partir desta ideia de que podemos “retirar” da Caixa de Pandora o que desejarmos consciente ou inconscientemente, que começa a nossa história presente acerca da pandemia COVID 19.

Segundo narra o Mito, Zeus que sempre esperava uma oportunidade para destruir a criação de Prometeu (o devir humano, a Alquimização da dimensão instintiva), fica “sabendo” dos terríveis pecados da raça humana e vem conferir pessoalmente. Depara-se com três situações inusitadas: é recebido pelo povo devoto (pessoas que se ligam ao sagrado preponderantemente para pedir ao invés de agir); percebe a intenção de Licaão de matar Zeus (aniquilar o Sagrado por conta de sua inflação, ou seja, ele próprio aspirava se colocar no lugar de Zeus) e serve carne humana no jantar.

Perplexo e indignado (sim, os deuses Gregos se indignavam!!!) acredita encontrar a oportunidade para, enfim, banir do mundo os seres criados por Prometeu e, finalmente, consegue a permissão tão esperada do Conselho Olímpico para tanto. Disto decorre o dilúvio, salvando-se Deucalião e Pirra que dá início à nova humanidade (vide o mito de Pandora).

Considerando que podemos inferir que as três situações com as quais Zeus se depara é uma história que se repete em tempos atuais: (a) uma desvinculação coletiva com o Sagrado, ou seja, uma perda progressiva de amorosidade, bondade, respeito, ética, colaboração mútua, proteção para com a Natureza…; (b) uma condição humana de acentuada passividade onde as pessoas aguardam fervorosamente o gênio da lâmpada e parcamente realizam atos evolutivos através de seus esforços individuais e mais, ainda, agem de forma impulsiva buscando o próprio deleite desconsiderando a repercussão de suas ações sobre os demais; (c) e, coroando tudo isto, as pequenas e grandes corrupções que devoram a dignidade humana e produz toda sorte de miséria física e espiritual.

Testemunhando tudo isto temos a História da Vida no Planeta. Desde que a Ciência narra a trajetória evolutiva do Planeta, nos conta dos excessos que acordam Leis ou Forças equilibrantes que garantem a continuidade, a perpetuidade da Vida. Quando necessário (?) algumas espécies são dizimadas, em sua maior parte, para propiciar a retomada da vida em espirais ascendentes. Será esta a nossa condição neste momento histórico? Será que perdemos a percepção de como nos movermos colaborativamente com o Planeta e estamos nos tornando parasitas, predadores ferozes, sem limites, colocando em risco a homeostase da Terra? 

A História ainda nos conta que desde sempre, na medida em que os humanos se espalharam pelo mundo, as enfermidades infecciosas (peste Antonina, peste Negra, cólera, malária, tuberculose, lepra, gripe Espanhola, gripe Suína, varíola, COVID 19…) sempre estiveram presentes. Violação desmedida da Natureza que acorda seus perigos adormecidos? Ganância? Mover-se pelo mundo desconhecendo ou ignorando os perigos? Corrupção? Talvez tudo isto junto e misturado.

Ao considerarmos estas questões a ideia não é apresentar uma visão apocalíptica  de pecado e castigo. A ideia é considerar que o desconhecimento humano recai sobre o próprio homem e sobre o mundo na forma de desatinos. Desconhecimento, apego e aversão são atitudes insanas diante da grandiosa generosidade da Vida. O apego, posto que nos aprisiona ao que consideramos essencial em nossas vidas, nos rouba conquistas excepcionais do devir. Por ele matamos e morremos. A aversão, irmã gêmea do apego, faz com que combatamos e lutemos contra tudo o que não é a nossa imagem e semelhança. Gera intolerância que elimina a multiplicidade criativa das diferentes janelas perceptivas sobre a Vida. O desconhecimento acerca de que o Universo se expressa por milhões de faces para contemplar a todos os seres em seus diferentes graus evolutivos, é a mãe/pai do apego e da aversão.

Como podemos perceber, ao homem foi outorgado o poder de decidir sobre a sua própria existência e, até determinado ponto, de atuar sobre a Vida Planetária. Parece que a grande questão deste momento é como estamos agindo sobre todas as coisas. E, agindo sobre as coisas, o que estamos desencadeando sobre nós mesmos e no mundo.  

Será que os Seres criados por Prometeu ficará sob os auspícios da Caixa de Pandora esquecendo-se de seu devir? Será que a esperança, o trabalhar e confiar, que faz acordar os atributos, de fato, Humanos ficará encarcerado no ventre do desconhecimento, apego e aversão que são as faces dos instintos naturais mais ancestrais?

Felizmente, tudo o que nos ocorre neste momento está no âmbito humano, portanto acessível aos processos de transformação. Considerando os propósitos de nossa criação: migrarmos dos instintos bravios para uma condição de seres conscientes, tudo indica ser possível mudar o rumo da história deste momento.

Não é razoável construirmos uma extinção em massa. Já conhecemos a história. Só precisamos de algum grau de discernimento e mudança de atitudes para fazer a roda do infortúnio cessar…