A CARTA DO CACIQUE SEATTLE

Em 1852, o governo dos Estados Unidos propôs comprar as terras das tribos indígenas Suquamish e Duwamish, localizadas na região de Puget Sound, no atual Estado de Washington.

O objetivo era dar prosseguimento à ocupação do território norte-americano com populações estrangeiras que chegavam ao país. O governo pretendia deslocar as duas tribos para uma reserva indígena, oferecendo-lhes algumas garantias e compensações.

Em 10 de janeiro de 1854, Isaac Stevens, Governador do Território de Washington, esteve em Puget Sound para reforçar a oferta de compra das terras. Naquele dia, o Cacique Seattle, como era conhecido o chefe das tribos Suquamish e Duwamish, proferiu um histórico discurso em que se destacou a transitoriedade da existência, expressou seu profundo amor pela natureza e mostrou a necessidade de se tomar conta da terra e de toda vida sobre a terra.

O discurso proferido pelo Cacique Seattle foi traduzido para o inglês pelo médico Henry Smith, que o publicou pela primeira vez na edição de 29 de outubro de 1887 do Jornal Seattle Sunday Star. Smith chegara a Seattle como superintendente escolar em 1853. Tinha um talento especial para idiomas, e logo aprendeu a língua dos índios. Ele deixou claro em seu artigo que a versão que publicava não era uma cópia exata do discurso original de Seattle, mas o que pôde reconstruir das notas que tomara na ocasião.

Quase um século depois da publicação do artigo de Henry Smith, já na década de 1970, surgiu um novo texto, escrito pelo roteirista de cinema norte-americano Ted Perry, inspirado no discurso do Cacique Seattle. Os ambientalistas fizeram deste novo texto uma espécie de manifesto ecológico do período e o distribuíram em universidades mundo afora.

Recriação livre e poética do artigo publicado por Smith, o texto de Ted Perry tornou-se a versão mais difundida do que hoje se conhece como A Carta do Cacique Seattle,e é a que se encontra publicada neste Seminário Junguiano.

Assim, A Carta do Cacique Seattle tornou-se uma construção histórica, nascida de um pronunciamento original e que foi ganhando novos contornos poéticos e políticos ao longo do tempo.

Mas sua essência permanece e reverbera ainda hoje, 150 anos depois do discurso. Os sentimentos expressos pelo líder das tribos Duwamish e Suquamish se identificam com os de todos os povos afetados pelo desenvolvimento de sociedades mercantis e industriais. A Carta é um forte chamado à nossa consciência ecológica. Uma peça de literatura poética, que tem como assunto central a identidade humana com a Mãe Natureza – a Terra Mãe, como a chamava o chefe indígena.

O CACIQUE SEATTLE

Filho de um importante líder da tribo Suquamish e de uma escrava, o cacique Seattle nasceu por volta de 1786. Em torno de 1800, os Suquamish sofreram uma série de ataques de tribos vizinhas. O jovem Seattle participou de algumas dessas batalhas, nas quais demonstrou coragem e astúcia.

Sua liderança passou a se firmar a partir de 1805, quando introduziu novos métodos de combate. O mais engenhoso consistia no corte de uma grande árvore, de modo que caísse atravessada no rio por onde os Suquamish seriam atacados. Como os ataques eram feitos durante à noite, os inimigos terminavam se chocando com o tronco de árvore. Enquanto se ocupavam em tentar salvar suas canoas e equipamentos, os homens de Seattle os atavam de terra firme. Logo depois da vitória contra as tribos da região de Green Rivers, ele se apropriou do nome do avô – Seeyahtlh – e se tornou o chefe das tribos Suquamish e Duwamish.

Em 10 de janeiro de 1854, diante do Governador de Washington, Isaac Stevens, recomendou a suas tribos que fossem para a reserva que o governo lhes destinava. Sabia que não poderia resistir às armas de fogo, caso optasse pelo confronto. Por isso preferiu deixar suas palavras para a história e assegurar direitos que considerava inegociáveis para o seu povo. “The indian’s night promises to be dark” (“a noite dos índios será escura”), teria dito ele na ocasião, de acordo com Henry Smith.

Os anos seguintes cuidaram de confirmar a profecia do velho chefe. Ele tentou fazer com que o governo cumprisse as promessas, mas pouco conseguiu. Morreu em 7 de julho de 1866.

A CARTA

“O grande chefe de Washington diz que quer comprar a nossa terra. Essa idéia é estranha para nós. Como é possível comprar ou vender o céu e o calor da terra?  Se o ar fresco e o brilho das águas não nos pertencem, como podemos vendê-los?

Cada parte desta terra é sagrada para meu povo. O ramo do pinheiro, os grãos de areia à beira-mar, a névoa na floresta escura, o vaga-lume e o beija-flor, todos pertencem à história e às tradições de meu povo.

A seiva que corre nas árvores carrega memórias do homem de pele vermelha. Conhecemos a seiva das árvores como conhecemos o sangue que corre em nossas veias.

O homem branco não compreende nosso modo de viver. Uma porção de terra, para ele, é como outra qualquer.  A terra não é sua irmã, nem sua amiga,. Depois de exauri-la, abandona-a, deixando para trás o túmulo de seus antepassados e os sonhos de seus filhos.

O homem branco trata a sua mãe – a terra – e seu irmão – o céu – como bens a serem comprados e vendidos, como faz com as ovelhas e as pedras preciosas. Quando o homem branco morre e vai caminhar entre as estrelas, esquece sua terra de origem.

Mas a morte de um homem de pele vermelha nunca é esquecida por sua terra. As flores perfumadas são nossas irmãs; os cervos, os cavalos, as grandes águias são nossos irmãos. Os cumes rochosos, os sulcos úmidos das campinas, o coração que pulsa nos potros e o homem – todos pertencem à mesma família.

Quando o grande chefe de Washington diz que quer comprar nossa terra, ele pede muito de nós. Diz que nos reservará um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos suas crianças.

Nós iremos considerar sua oferta. Mas não será fácil, pois esta terra é sagrada para nós. A água brilhante que corre em nossos rios não é só água; é também o sangue de nossos ancestrais. O murmurar das águas é a voz de meu avô. Os reflexos no lago contam histórias da vida de meu povo.

Os rios são nossos irmãos. Os rios matam  nossa sede, carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças.

Se vendermos nossa terra, o grande chefe de Washington deverá ensinar a seus filhos que os rios são também seus irmãos, e que, doravante, deverão tratá-los com a mesma gentileza com que tratam seus irmãos.

Nossos costumes são diferentes. A visão de suas cidades faz doer os olhos do homem de pele vermelha. Talvez porque eu seja um selvagem e não compreenda.

Não há lugar calmo nas cidades dos homens de pele branca. Não há lugar onde se possa ouvir as flores desabrocharem na primavera ou o bater das asas de um inseto. A algazarra insulta os ouvidos.

Mas o que é a vida, se não podemos ouvir o solitário choro de uma ave ou a conversa dos sapos, à noite, ao redor da lagoa? Sou um homem de pele vermelha e não compreendo.

Prefiro o suave murmúrio do vento que vem do lago e bate no rosto, e o cheiro do vento banhado pela chuva e perfumado pelos pinheiros.

O ar é precioso para o homem de pele vermelha. Todos o seres compartilham o mesmo ar, os animais, as árvores, o homem. O homem branco parece não notar o ar que respira. Como alguém que agoniza longamente, ele se torna insensível ao mau cheiro.

Se lhe vendermos nossa terra, o grande chefe de Washington deverá lembrar-se que o ar também é sagrado para nós, que o ar compartilha seu espírito com todos os seres a quem dá vida. A brisa que permitiu a nosso avô sua primeira inspiração também recebeu seu último suspiro.

Esta terra deverá permanecer intacta e sagrada, como um lugar em que até o homem branco possa saborear o vento adoçado pelas flores da campina.

Deverá também tratar os animais desta terra como seus irmãos. Meus olhos já viram búfalos abandonados na planície pelo homem branco que atirara neles de seu trem. Eu sou um selvagem e não compreendo como um cavalo-de-ferro fumegante pode ser mais importante que os búfalos.

O que seria dos homens sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma imensa solidão de espírito. O que quer que aconteça com os animais, logo acontece com os homens. Todas as coisas estão ligadas.

O grande chefe de Washington deverá ensinar às suas crianças que o solo sob seus pés contém as cinzas de nossos avós. Assim eles aprenderão a respeitar a terra.

E deve ensinar a elas o que temos ensinado às nossas :  que a terra é nossa mãe. O que acontece com a terra, acontece com os filhos da terra.

Não foi o homem que teceu a rede da vida; ele é apenas um fio nessa trama. O que ele fizer a esse tecido, estará fazendo a si próprio. Mesmo o homem branco não pode ser dispensado desse destino comum.

Uma coisa nós sabemos, e o homem branco poderá um dia descobrir – nosso Deus é o mesmo Deus. O homem branco pode pensar que O possui, da mesma forma que deseja possuir nossa terra : mas não pode.

Ele é o Deus de todos os homens, e sua compaixão é a mesma, seja para o homem branco ou o homem de pele vermelha. Esta terra é preciosa para Ele, e feri-la é desrespeitá-lo.

Os brancos também passarão ; talvez mais rápido que as outras tribos. De tanto contaminarem sua cama, serão sufocados em seus próprios dejetos. Mas, ao morrer, brilharão como um incêndio, iluminados pela força do Deus que os trouxe à terra e que por algum propósito especial lhes deu domínio sobre ela e sobre o homem de pele vermelha.

O destino é um mistério para nós. Não entendemos por que os búfalos são mortos, por que os cavalos selvagens são domesticados, por que os recantos secretos das florestas estão impregnados do hálito de tantos homens e a vista de colinas perfeitas é maculada pela presença de fios que falam.

Onde está o bosque? Desapareceu.

Onde está a águia? Foi embora

Sabem o que significa dizer adeus ao potro veloz e à caça?

É o fim da vida 

e o começo da sobrevivência

Quando o último homem de pele vermelha for banido junto com sua selva, e sua memória for somente a sombra da nuvem passando sobre as campinas, ainda estarão aqui os terrenos à beira-mar? E as florestas? Terá sobrado algo do espírito do meu povo?

Amamos nossa terra como uma mãe ama seu bebê. Portanto, se lhe vendermos nossa terra, grande chefe de Washington, ame-a como nós a amamos. Tome conta dela como temos tomado. Guarde em sua memória a lembrança da terra que lhe entregaremos. Preserve-a, para que todas as crianças e todos os homens a amem, como Deus ama a todos nós.

De uma coisa nós sabemos : há somente um Deus. Nenhum homem, de pele vermelha ou branca, pode desconhecer isto. Somos irmãos, apesar de tudo.”